quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Mudanças - Via Crucis

Apesar de muitas vezes acreditarmos que pequenas mudanças não afetam o conjunto da nossa vida, muitas vezes elas são mais amplas do que podemos imaginar, e englobam coisas que jamais imaginaríamos. Tudo começou, pra mim, de uma forma muito simples e em poucos meses minha vida havia mudado radicalmente.

Mudanças são, muitas vezes, inerentes a nossa vontade. Apesar de desejar muito mudar de casa, essa mudança ocorreu num momento inesperado. Dois anos e oito meses antes eu a comprara. Minha primeira casa própria. Batalhei durante quatro meses para a realização daquele sonho, e ao entrar jurei que só moraria ali por três anos. Naquele momento da minha vida a compra da minha casa não foi feita por vontade, mas por necessidade. Sempre quis morar próximo ao trabalho e essa casa era distante, mas era próximo da minha família. E eu precisava da minha família perto por ter dois filhos pequenos.

Havia marcado minhas férias e uma viagem pra Buenos Aires. Seria uma viagem pra comemorar dois anos de namoro. Pra mim um recorde. Até aquele momento a minha relação parecia perfeita e isso parecia milagre. Acreditava ter encontrado alguém pra compartilhar a vida.

Estudei cada detalhe da viagem. Lia mapas da cidade quase todo o dia. Lia blogs sobre viagem, artigos sobre os melhores lugares, os melhores passeios. Criei um roteiro. Enfim me dediquei durante quatro meses para aquela viagem. Estudei tanto que quando cheguei lá, parecia que eu conhecia tudo. Mas três semanas antes da viagem, fui surpreendida pela notícia da venda da minha casa. Teria trinta dias para deixá-la. E meu primeiro dia de férias foi procurando um novo lugar pra morar.

Desejara aquela mudança um ano antes. Quando cheguei naquela casa, precisava esquecer o passado. Passei dois anos reclusa de quase tudo em busca de minha auto descoberta. Em busca de curativos pro meu coração. Todo tempo em que morei naquela casa estive envolvida com obras. A busca por um bom pedreiro, gastos com material de obra, com mão de obra. A necessidade constante de modificações fez com que me cansasse demais. Eu não queria mais aquilo. O lugar que era pra me trazer paz acabou dando-me dor de cabeça e problemas financeiros.

Quando disse que pretendia vender minha casa e morar de aluguel, todos disseram que estava louca e eu lhes dizia que precisa me ocupar com outras coisas além de reformas de casa. O tempo mostrara novas necessidades e eu precisava mudar. Precisa realizar a profecia que eu mesma traçara tempos atrás. Era o meu tempo. A minha hora.

Um amigo do trabalho me falou que seria difícil achar um imóvel tão rápido, mas isso não aconteceu. O primeiro apartamento que vi me encheu de alegria. Ele era perfeito, grande, arejado, e numa rua tranqüila. Tudo de que precisava tinha por perto, bancos, lavanderia, restaurante, pensões, mercados, floricultura etc.

Minha via crucis começou ao tentar alugar. Achavam que minha renda não suportaria as despesas do imóvel. Provei que podia pagar e em uma semana já estava com as chaves do imóvel. Como a felicidade dura pouco, meu namorado se machucou e fiquei sozinha pra fazer a mudança. Na primeira parte da longa jornada da mudança, cheguei a ponto de sentar e chorar por não ter quem me ajudasse. Um vizinho muito enxerido me viu chorar e ofereceu ajuda.

Consegui levar as coisas mais importantes. Faltavam apenas alguns dias pra viagem e estava mais tranqüila. As coisas mais leves eu levava de bicicleta pra nova casa. Minha chefe me emprestara duas bolsas grandes que eu prendia nas costas e na cestinha da bicicleta, levando de uma casa a outra o que necessitava.

Confesso que achava muito engraçado, não era perto uma casa da outra. Cerca de quarenta minutos de caminhada ou quinze minutos de bicicleta correndo. Mas, apesar do cansaço eu estava feliz. Cumpriria minha palavra e conseguiria viajar sem problemas. Só que na mudança eu perdi todo o roteiro que havia escrito, não tive outra escolha a não ser improvisar. Sou boa de improviso, mas senti-me frustrada por não ter conseguido ir a todos os lugares que desejava. A viagem foi curta, cansativa, mas foi muito bom perceber o quanto o Brasil é um país incrível e promissor. A Argentina passava por uma enorme crise financeira. Pra nós foi relativamente bom, porque o real valia o dobro do peso, e isso baixou muito o custo da nossa estadia. Comprara a viagem enquanto o dólar estava baixo e durante a viagem aproveitei o bom câmbio.

Era triste ver pessoas passando necessidade nas ruas, e o mais estranho era ver gente branca, loira e de olhos azuis sentadas nas ruas pedindo esmolas. No Brasil nós geralmente não vemos esse perfil na mendicância. A Argentina não teve o contingente de africanos que o Brasil, então era raro ver uma pessoa negra por lá. Foi lá também que aprendi a valorizar o metrô do Rio de Janeiro. O metrô de Buenos Aires é antiqüíssimo, e ainda preserva a forração dos bancos em veludo vinho, fora às outras coisas. Senti-me numa viagem ao passado, tão passado que deu medo do vagão descarrilar. Rs

À volta ao Brasil não me trouxe descanso, faltava retirar o restante das coisas e entregar as chaves. Fora que houve atraso na montagem dos móveis da cozinha e fiquei cinqüenta dias sem poder cozinhar. Acho que esse fato fez com que eu e essa parte da casa não nos entendêssemos até hoje.

Minhas férias acabaram sem que eu tivesse descanso, e na volta minha chefe estava de férias. A volta ao trabalho chegou com uma insuportável dor de cabeça. Achei que fosse o estresse da volta. Até que a dor foi aumentando até eu não suportar mais olhar a luz do dia sem sentir como se uma faca atravessasse meu cérebro.

Para meu desespero os exames mostraram que eu estava com uma sinusite quase cronificada. Foram antibióticos, descongestionantes e antialérgicos fortes. Eu não melhorava e ia estava cada vez mais dispersa e sonolenta por conta dos antialérgicos. Fora que as chuvas do inicio de abril fizeram meu trabalho dobrar. Chorava ao levantar da cama. Sentia como se trabalhasse carregando grandes pedras nas costas.

Foi quando numa sexta feira antes do dia das mães, ao chegar no trabalho deparei-me com um memorando solicitando minha presença no GRH. Eu sabia que não seria demitida, afinal sou concursada e estatutária, mas não tinha idéia de que dali pra frente minha vida teria uma virada incrível.

Havia sido cedida pra outro órgão por seis meses, e trabalharia perto de casa. Gosto de pensar que nos momentos mais difíceis Deus sempre nos dá uma ajuda. Chegara realmente ao meu limite, e ele na sua divina sabedoria providenciara um descanso pra mim. Adoraria que isso fosse verdade, mas essa mudança gerou alguns transtornos. Pra começar, teria que mudar meu filho mais novo de escola, uma vez que ele estudava próximo ao meu trabalho. Segundo teria que me adaptar ao horário do novo trabalho que era diferente. Teria que refazer toda a minha rotina, e isso só duraria alguns meses. Minha alimentação estava condicionada a minha rotina, então virou uma bagunça e engordei seis quilos.

Confesso que os quilos a mais não me perturbam tanto. Nesse ínterim comecei um tratamento com vacinas para alergia e aos poucos minha disposição foi voltando. Só que a mudança na minha rotina trouxe a tona problemas que antes eu não via. Fazia-se necessária algumas adaptações que não dependiam de mim.

Num dado momento, percebi que a perfeição não existia. Vivia no mundo de Alice. Um mundinho aparentemente perfeito, mas absolutamente irreal. Sem perceber fui deixando de ser eu, de me preocupar com as coisas que eram importantes pra mim, e passei a ser aquilo que esperavam que eu fosse. Fui me entregando aos problemas alheios e a ilusão alheia e me distanciando de quem eu era.

Passei três meses, analisando cada pró e contra, cada conquista, cada derrota, cada cenário diferente para a solução do que acabou não tendo solução. Quando se tem filhos, nada é somente sobre você e ou outro. Passa a afetar muitas pessoas e isso gera um peso enorme nas decisões. Levei três meses pra descobrir que aos poucos fui perdendo o prazer. Perdi o prazer de comer, de cozinhar, de dormir, deixei de aproveitar meu sacro santo lar, deixei de fazer coisas que acreditava serem importantes. E o pior de tudo foi descobrir, ao tentar escrever sobre a fé, que eu não a perdera, mas guardara numa das caixas da minha mudança e agora não conseguia descobrir onde ela estava.

Esquecer a fé é como perder o ar que respiramos. Perdi a mim mesma e hoje tenho que me encontrar. Esse ano foi o ano mais agitado da minha vida. Fiz muitos planos, acreditei que eram reais os sonhos alheios, a crença alheia e me perdi de mim. Desfiz-me do meu eu, de quem eu sou, perdi meu chão, meu alicerce, minha viga de sustentação.

Fé é uma daquelas palavras que são difíceis de explicar ou teorizar. Fé é uma experiência individual, intransferível, e única na sua magia. Precisei escrever sobre algo que não conhecia, ver uma filme que pressentia se necessário, tudo isso para descobrir que preciso me perdoar por erros que não cometi e redescobrir minha fé.

Seis anos atrás eu vi um filme que, mais tarde, me ajudou a passar por um momento muito difícil, mas não tão difícil como este agora. Era a história real de uma escritora e crítica de livros chamada Mayer. Seu casamento acabou inesperadamente. Enquanto trabalhava como crítica de livros para sustentar a casa, seu marido dizia escrever um livro. Só que na verdade ele tinha um caso com uma jovem muito mais nova. Nos EUA, aquele que sustenta a casa, homem ou mulher, deve ao cônjuge pensão no divorcio. No acordo, seu marido ficou com a casa e ela teve que mudar para um prédio de divorciados. Suas amigas lhe pagaram uma viagem à Itália que mudaria sua vida por uma série de fatos engraçados e trágicos.

Às vezes, mudanças como esta, apesar de parecerem ruins num primeiro momento, servem para nos mostrar que outros caminhos são possíveis. Para Mayer, sua vida acabara com o divórcio, uma vez que as pessoas não se casam para separar-se depois. E esse sentimento tomou conta de sua vida. Abdicara de escrever para trabalhar com algo que não lhe dava prazer, mas pagava as contas. Foi traída pelo homem que jurou amar até a morte e teve que reconstruir sua vida do nada num lugar que não conhecia e num país cuja língua não falava. Mas foi essa série de fatos atípicos e instigantes que fez com que ela voltasse para suas origens e se redescobrisse.

O modelo romântico de amor descrito nos contos de fadas e nos filmes holliwoodianos nem sempre condizem com a realidade. O final feliz nem sempre é como desejamos. Não são poucos os momentos em que o final feliz é o resultado de um processo de cura para um coração partido. Meyer descobriu isso e transformou sua experiência em um livro. Esse mês estreou um filme com uma história parecida (Comer, Rezar, Amar), também baseada na vida de uma escritora americana, Elizabeth Gilbert, que depois de um doloroso processo de divórcio resolveu ficar sozinha e viajar durante um ano. Foi esse filme que me mostrou o que faltava em minha vida. Embora as últimas decisões eu tenha tomado antes dele.

Tem uma cena em que ela está sozinha no banheiro, enquanto o marido dorme no quarto e ela chora muito. Ela diz pra si mesma que não quer estar casada, que não quer a vida que construiu. Ela olha pra tudo ao redor e diz que não quer aquilo. Foi engraçado descobrir que não sou a única. Eu tenho filhos, ela não os queria. Ela descobriu que o caminho dela era ficar por um ano sozinha viajando para se encontrar. Tanto Gilbert quanto Mayer não tinham casa/lar, elas precisaram construir isso. Eu descobri que preciso construir um lar dentro de mim, uma vez que casa eu já tenho. Eu vivia uma ilusão, e agora preciso me desfazer dela. Eu achava que tinha um lar, mas eu só habitava uma casa vazia de mim.

Não gosto de receitas de bolo. Elas nos encarceram. Prefiro saber os ingredientes que são importantes e experimentar acrescer coisas novas, experimentar alterar as medidas de cada ingrediente. Tem vezes que acreditamos que um ingrediente é primordial, quando ele pode ser facilmente substituído ou extirpado da receita.

Acreditava ser impossível fazer um bolo sem farinha, ou fermento. Mas uma senhora me ensinou a fazer bolo sem nenhum desses ingredientes e o bolo cresceu. Nem sempre as coisas que parecem mais importantes na nossa vida, realmente o são. Conheci uma pessoa que dizia que nada nem ninguém era insubstituível, e apesar de ter me revoltado com ele na época, hoje posso entender melhor o que ele disse.

Não sei se acho ruim não existir uma pílula mágica que resolva de uma vez todos os nossos problemas. Cientistas do mundo inteiro buscam fórmulas mágicas pra melhorar a vida das pessoas. Li que criaram um remédio pra solucionar o problema sofrido por quem voa muito. Mas como disse, não sou fã de receitas de bolo. Gosto de esmiuçar a vida em busca de novas fórmulas, novos caminhos, novas direções.

Tem uma música muito bacana da Vanessa Da Matta que diz “as coisas não são assim, não é vovó, são coisas que a gente não escolhe não dá. As coisas do coração, não é vovó, elas são como são e a gente muda. Amanhã não quero confundir atração sexual com ilusões de amor puro...”. Disse para um amigo recentemente que as ilusões não podem ser impedidas. Criamos pré-conceitos o tempo todo sobre tudo, e até sobre nós mesmos. Tais pré-conceitos são nada mais que ilusões. Ilusões são necessárias para que não sejamos pessimistas o tempo todo. A fantasia é tão necessária quanto a realidade. Ambas em excesso geram dor e sofrimento, mas equilibradas geram prazer e felicidade.

Lembro-me que quando adolescente era comum olhar um cara bonito e ao aproximar-me dele perceber que era um estúpido. Isso não quer dizer que os caras feios eram melhores, mas sim que as aparências enganam. Maria Betânia cantou uma música que foi tema da abertura de uma novela que falava sobre isso: “As aparências enganam aos que odeiam e aos que amam...”.

As ilusões são, de certa maneira, inerentes a nossa razão. Segundo Platão, os sentidos são ilusórios e apenas a razão pura é confiável. Ao olharmos o sol não temos como perceber seu real tamanho, para nós ele parece menor do que a Terra. Todavia a ciência, razão pura (?), provou que isso é apenas ilusão de ótica. Segundo um amigo, quando olhamos para o sol, vemos um ser tranqüilo, mas sabemos que ele passa longe de ser tranqüilo, e que ocorrem explosões o tempo todo nele, e que as ondas magnéticas derivadas dessas explosões são um risco para o nosso planeta.

Ilusões, fantasias, dor e felicidade são fatores que muitas vezes se misturam em nossas vidas, e há momentos em que ocorrem ao mesmo tempo. Temos muita dificuldade de lidar com os sentimentos que nos levem a sentir dor. Tive um professor de filosofia que dizia que o caos muitas vezes é necessário para que nossa vida se mova, para que ajam transformações essenciais para nossas vidas. O desequilíbrio faz com que nos movimentemos para readquirir o equilíbrio, esse movimento nos proporciona renovação.

Em oito anos mudei de casa por oito vezes. Cada vez que me mudava pensava quanto tempo ficaria. Algumas vezes eu mudava de idéia quanto a casa em poucos meses, a penúltima casa em que morei fiquei por quase três anos. Quando vemos uma casa não a conhecemos, conheci uma arquiteta que dizia que necessitava morar e observar durante meses a incidência de luz para definir a cor de cada parede ou cômodo. Com o tempo a casa era capaz de dizer a ela o que queria.

Cada mudança foi dolorosa e, embora relativamente perto, custosas e demoradas. Levo quase um mês pra dormir direito em um lugar diferente. É o tempo que preciso pra me adaptar ao novo. Conheço pessoas que não demoram pra se adaptar e outras que necessitam repetir várias vezes o mesmo caminho pra se adaptar.

De qualquer maneira, há um desconforto inicial com o novo, que só é dirimido quando este deixa de ser novo e passa a figurar o velho, o antigo, o hábito. Necessitamos de tempo, e este é o melhor remédio que há. Minha amada avó dizia que quando não há o que fazer, o melhor é comprar feito.

A vida é um palco que não nos permite ensaios, é sempre uma estréia. Ouvi isso de uma amiga e não sei dizer de onde ela tirou. Meu palco caiu, terei que reconstruí-lo. O amor que acreditava ser perfeito mostrou-se irreal. Resolvi que vou começar minha jornada de auto conhecimento redescobrindo o prazer de estar em casa. Vou começar arrumando minhas coisas, voltando a cozinhar, limpando tudo por fora, pra ver se a parte de dentro fica mais clara. Depois tenho que descobrir um jeito, um caminho para reencontrar a minha fé.

Desejem-me sorte.

“ Vim gastando meus sapatos

Me livrando de alguns pesos

Perdoando meus enganos

Desfazendo minhas malas

Talvez assim chegar mais perto

Vim achei que eu me acompanhava

E ficava confiante

Outra hora eu era o nada

A vida presa num barbante

E eu quem dava o nó

Eu pensava em nós dois

Mas já cansava de esperar

E tão só eu me sentia

E seguia a procurar

Esse algo, alguma coisa

Alguém que fosse me acompanhar

Se há alguém no ar

Responda se eu chamar

Alguém gritou meu nome

Ou eu quis escutar

Vem que eu sei que ta tão perto

E porque não me responde

Se também tuas esperas

Te levaram pra bem longe

É longe esse lugar

Vem nunca é tarde ou distante

Pra eu te mostrar os meus segredos

A vida solta num instante

Tenho coragem, tenho medo

Que se danem os nós.

Se há alguém no ar

Responda se eu chamar

Alguém gritou meu nome

Ou quis escutar.”

(Ana Carolina)

Um comentário:

  1. Comecei a escrever esse texto muito antes de publicar. Ele não é um dos mais eloquentes, mas um dos que mais gosto.

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