quarta-feira, 30 de março de 2011

UM AMOR, UM ADEUS, NOSSO ADEUS!

No dia seguinte à minha última postagem, recebi a triste notícia do falecimento de um bom amigo. Ele havia sofrido um grave acidente de carro, 40 dias antes. Seu estado inspirava muitos cuidados, e nem sempre a palavra estável significa algo bom. Por mais que minha razão gritasse que as chances de vida dele eram ínfimas, a sua morte me trouxe profunda tristeza. Acreditava que ele viveria por um pouco mais de tempo, mas caso isso ocorresse, seria ainda mais doloroso para aqueles que o amavam.

Tão logo recebera tal notícia, recordei de uma conversa que tive, anos antes, com duas amigas acerca da morte. Uma delas disse que se recebesse a notícia de que estava em estágio terminal, preferiria qualquer procedimento que a levasse rapidamente a morte, do que um tratamento que prolongasse sua vida. Esse assunto surgiu da experiência vivida por uma colega de trabalho, que lutou bravamente durante cerca de oito anos contra o câncer.

Este começara com um tumor no seio e alastrara-se por vários outros órgãos. Tendo em vista seu agressivo câncer e devido à ineficácia dos tratamentos feitos para sua supressão, fora-lhe dado seis meses de vida. No entanto sua vontade de viver era tão grande que os meses transformara-se em anos. Nem mesmos as agruras da vida fizeram com que essa mulher desistisse de viver. Nem tampouco, deixava de sorrir e contar suas histórias engraçadas.

Convivi com essa brava mulher durante quatro anos, dos quais aprendi que não importa o que aconteça, a força de viver, à vontade de viver, não pode nunca estar pautada nos outros, mas tem que existir dentro de nós. Mas, mesmo assim, são aqueles que nos cercam, que nos amam, que fazem com que a chama da vida nunca se apague em nós.

Não pude estar ao seu lado nos últimos momentos de sua estadia neste mundo, e tão pouco pude comparecer ao seu velório e enterro. Eu, simplesmente fui incapaz de ver seu corpo sem vida. Preferi lembrar dela com seu largo sorriso, seu sotaque nordestino, seu amor pela vida e suas histórias engraçadas. Eu sei que ela morreu sabendo o quanto foi amada, o quanto foi admirada por sua força e coragem.

Nenhuma criança deveria ter consciência da brevidade da vida, mas infelizmente tragédias não escolhem idade, raça, sexo ou qualquer outro diferencial. Foi numa tarde dessas bem comuns, que recebi a triste notícia da morte de um colega. Eu contava oito anos, ele uns nove ou dez. Éramos como cão e gato, e alguns dias antes de sua morte havíamos brigado feio. Ele me tratava mal, e puxava meus cabelos. Éramos muito inocentes, bem diferentes de algumas das crianças de hoje. Disse-lhe que nunca mais falaria com ele se não me pedisse desculpas. Para crianças o nunca é tão logo quanto um sorriso ou piscar de olhos. Mas para mim, naquele momento, o nunca seria realmente nunca.

O choro não veio fácil. A raiva que tomou conta de mim foi irracional. Lembro-me como se fosse hoje, de reclamar dele ter partido sem que tivéssemos feito as pazes. Ele era meu companheiro de madrugada, enquanto nossas mães conversavam na rua até o dia amanhecer. Víamos desenho no SBT. A partir de meia noite dava Tom e Jerry, e também Pica-pau. E agora? O que eu faria sem ele? Com quem eu diria que me casaria quando crescesse? Com quem eu brigaria, mesmo sabendo que não podíamos ficar mal um com outro?

A morte não era novidade pra mim, dois anos antes, minha irmã mais velha morrera. Mas desta vez era diferente. Minha irmã foi morrendo aos poucos, durante quatro anos. Pouco antes de falecer, eu mal a via. Minha mãe nunca me disse que ela morrera. Simplesmente me deixou esquecer. Mas agora, tudo era diferente. Allan e eu brigáramos no final de semana, e agora, como num passe de mágica, ele se fora.

No ano seguinte foi a vez do meu avô. Meu adorado avô. Estava me preparando pra ir pra escola, quando alguém bateu na porta e minha mãe começou a gritar histericamente: Ele se foi, ele se foi. Minha tia e minha avó estavam levantando-se, e puseram-se todos a chorar a minha volta repetindo o que minha mãe dissera. Perguntava aflita quem havia partido, e ninguém respondia. Fiquei tão aflita que comecei a chorar. Minha mãe, depois de um tempo, virou-se pra mim e disse que eu não iria a escola, meu avô estava morto.

Não acredito que minha tragédia pessoal tenha sido maior do que a daquelas pessoas que em janeiro deste ano perderam tudo o que tinham, e muitos toda a sua família no desastre da região serrana do Rio de Janeiro. Ou tampouco, a que ocorreu a alguns dias no Japão, onde muitos podem sofrer durante décadas os efeitos da radiação que escapou da Usina Nuclear de Fukushima.

De qualquer maneira, ao longo dos anos seguintes, fui perdendo várias pessoas da família e, também, conhecidos e amigos. A experiência com funerais e velórios, assim como o conhecimento adquirido ao longo dos anos, deveria ter me fortalecido, tornado mais forte. Mas não é assim que me sinto. Tive dificuldades pra escrever sobre tudo que aconteceu desde seu acidente até sua inevitável morte. Ensaiei o que escreveria, repassei diversas vezes mentalmente meu discurso, e nada. Parei até de olhar meu notebook, como se ele fosse me cobrar por não digitar nenhuma palavra sobre os acontecimentos.

Precisei de tempo para entender o que estava sentindo. Havia também meus próprios dramas pra entender. E a cada dia que passava ficava mais difícil sentar para escrever algo. Sentia como se o fato de não escrever fosse a prova de que tudo não passara de um sonho, um pesadelo. Senti medo. Logo eu, aquela que sempre tem algo pra dizer, uma palavra de consolo, de estimulo, de apoio. Naquele momento eu precisava de ajuda, mas não era capaz de exteriorizar isso. Não era capaz de sequer entender o porquê de tanta dor.

Somente hoje consegui compreender melhor o que sentia, o que sinto. Não era a dor pelo amigo, mas pelas coisas de deixariam de ocorrer com aqueles que precisavam dele e que eu amava. Eu não estava triste, necessariamente, pela sua morte, mas pela dor que as pessoas ao meu redor sentiam. Passamos toda a vida tentando nos diferenciar uns dos outros. Na escola buscamos ser o melhor ou o pior. Todos querem ser diferentes ou importantes. Mas na hora da dor, na hora da tragédia, somos todos iguais. Somos todos humanos.

Enquanto escrevo, pessoas se reúnem pra consolar os familiares de um homem, que até bem pouco tempo era apenas mais um político. Mais um ex vice presidente. Se não fosse sua história de luta contra o câncer, talvez eu sequer me importaria com sua morte. Mas foi a minha convivência anterior com uma paciente na mesma situação que ele, que me proporcionou conhecer a grandiosidade de José de Alencar. Sua coragem diante da dor e do sofrimento que essa doença tão cruel, talvez tenha sido mais marcante pra mim e pra outras pessoas, do que sua atuação política. E foi a morte dele, desse homem que eu só conheci através da imprensa, que pude entender melhor o que me impediu de chorar, de pedir ajuda – o fato de que na dor, não importa nada, não importa quem somos, nossas diferenças, o que presenciamos é a nossa igualdade.