sábado, 20 de novembro de 2010

Manifesto Contra a Violência

Há dez anos atrás eu sofri um sequestro relâmpago, os bandidos olhavam pra mim e me chamavam de princesa. E cada vez que faziam isso eu sentia meu sangue ferver e uma vontade, quase incontrolável, de bater ferozmente neles até que o sangue deles manchasse minha roupa negra. Estavam muito nervosos provavelmente era um dos primeiros crimes que cometiam. Os bandidos nos levaram para a Ilha do Fundão, onde geralmente se desovavam corpos. Quando vi o carro entrar na Ilha, acreditei que de lá não sairia viva. Dava como certo o meu estupro e morte. Eles ficaram rodando conosco por cerca de uma hora, e nos deixaram na Linha Amarela, indo em direção à Avenida Brasil.

Sugeri ao meu amigo que fossemos dar queixa na 22ª DP. Próximo ao Mc Donalds havia uma patrulha, nos aproximamos e eles disseram que não poderiam fazer nada. Demos queixa e sentimos toda a frieza dos policiais, quando dissemos que o carro não tinha seguro. Na época as coisas eram mais simples. Algum tempo depois os sequestros ficaram mais agressivos, e eles obrigavam as vitimas a sacar dinheiro em agencias bancárias 24h.

Posso dizer que dei sorte, pois não me levaram nada. Todavia no dia 16 deste mês, sofri um assalto no ônibus e um rapaz negro, magro e jovem, de camisa vermelha, arrancou violentamente meu celular das minhas mãos, quase levando junto minha orelha. Ele entrou no ônibus em que eu estava, observou, viu que eu estava com uma criança, que era mulher. Quando o motorista abriu a porta do ônibus em frente a um polígono da polícia, ele me roubou o celular e o sossego.

Um ano antes um desconhecido levou meu celular no ônibus no Alto da Boa Vista, mas esse eu não vi quem era. Algumas semanas antes do assalto, me levaram um outro aparelho, novamente um desconhecido se aproveitou que eu estava com criança, para sorrateiramente levar meu celular. E alguns dias atrás isso foi feito de forma violenta.

O motorista do ônibus ainda deu uma volta pra ver se encontrava o rapaz, mas nada. Ele passou por três patrulhas da polícia e ninguém o viu. Parei em um dos carros e alertei, fiquei surpresa quando os policiais pediram que entrasse no carro e saíram em busca do meliante. Esses policiais não fizeram como os anteriores, eles se propuseram a fazer o seu trabalho. Passaram um rádio pras outras patrulhas pedindo que observassem caso vissem algum rapaz com a descrição que eu lhes dera.

Nada que foi feito tirou de mim a dor de ter um bem que eu conquistara com tanto esforço ser tirado de forma violenta de minhas mãos. O problema maior é a certeza que os criminosos tem da impunidade. O rapaz que me assaltou provavelmente era menor. Se pego, ele vai cumprir medida sócio educativa e depois, provavelmente, vai retornar para o crime. Sei que fui abençoada por encontrar pessoas de bem, que se dispuseram a me ajudar da maneira como podiam.

Mas precisamos muito mais do que UPPs para solucionar o problema da violência. Precisamos que os jovens de comunidades pobres vejam uma perspectiva de futuro melhor do que trabalhar como boy, ou não ter trabalho. É mais do que necessário que se invista em educação, e principalmente na educação para o trabalho. Precisamos que os governantes deixem de roubar com obras superfaturadas e invistam em geração de emprego e renda.

Precisamos apresentar um futuro melhor e mais digno para que esses meninos não sejam atraídos pelo dinheiro fácil e pelo tráfico de drogas e armas. Precisamos, todos nós, de esperança de um futuro, não muito distante, onde não teremos medo de andar nas ruas. Onde não tenhamos medo de andar com os bens que conquistamos com nosso suor. Onde não tenhamos que andar com dois celulares, o nosso e do iminente ladrão.

Não podemos nos culpar pela desordem e o caos, não quero ser vitima, mas também não quero ser culpada por não ter tido cuidado suficiente para resguardar meus parcos bens. Não quero ficar noites em claro pensando no que poderia ter feito pra evitar que um qualquer da sociedade me privasse de algo que eu, com trabalho honesto, comprei. Não quero pensar nos sapos que engulo todos os dias, na falta que sinto dos meus filhos, no tempo perdido no trânsito em que poderia estar sendo mais útil, e que usei pra comprar aquele celular e que me foi tirado.

Não aceito mais a vergonha do nosso país. A vergonha da minha cidade. A vergonha de não me sentir segura pagando os altos impostos que pago, para que ladrões de colarinho branco possam viajar em jatos particulares, terem seguranças particulares, para pagarem caras escolas pros seus filhos, enquanto que eu luto diariamente para pagar uma escolinha não muito cara, para que meus filhos não sejam esmagados pela educação pública.

Não aceito que essa corja de assassinos e ladrões minta descaradamente que são honestos enquanto pagam esmolas para que a população menos instruída os mantenham no poder. Não podemos aceitar calados aos mandos e desmandos de uma minoria que mama das tetas da maioria trabalhadora.

Eu quero dar um basta a essa corrupção, um basta à falta de bom senso das pessoas que se deixam iludir com falsas promessas. A repressão é necessária, mas junto com ela tem que haver outras medidas que impeçam que sejamos alvo da fúria dos marginais. Que percamos nossa paz.

CHEGA, pra mim CHEGA.

A PAZ QUE EU NÃO QUERO SENTIR

Essa é a segunda parte do meu manifesto pessoal contra a violência.

São duas horas da manhã e apesar de ter tomado uma taça de vinho pra relaxar, um banho quente (e quem me conhece sabe que é bem quente mesmo), eu não consigo dormir. Sinceramente não foi a discussão de meus vizinhos gays que me tirou o sono, tampouco o frio que senti invadir meu corpo e alma. Apesar da tentativa frustrada de meditar dizendo pra mim mesma entre uma expiração e outra que “Deus está dentro de mim”, sequer eu mesma estava dentro de mim.

A imagem da fração de segundos em que fui vitima (e como me dói dizer, escrever ou pensar nessa palavra) da violência de nossa cidade. Para alguns pode parecer um pouco de exagero, mas desde que me entendo por gente jamais havia, sequer presenciado um assalto na Praça das Nações. O pior de tudo foi isso acontecer em frente a um posto policial, numa das ruas mais movimentadas, e com bastante movimento.

Desta vez não foi à dor de perder meu celular, mas... não adianta tentar racionalizar o que estou sentindo. Impotência não diz muito, é mais. Frustração talvez, mais também não fala tudo. É um misto de sentimentos que vão da raiva à culpa, da revolta a dor que dilacera meu peito e me faz sentir absurdamente fraca. Sempre fui tão cuidadosa, sempre consegui ver nos olhos de alguém sua intenção. E agora não dei ouvidos aos meus instintos que diziam que aquele rapaz de rosto suave e traços finos era, na verdade, um aprendiz de marginal. Sim, porque roubar um celular da mão de uma mãe não é coisa de um criminoso experiente, mas de um aprendiz.

Fico, como um ator que ensaia uma peça, repassando aquela fração de segundos, pensando que poderia ter sido mais forte, que poderia ter tentado derrubá-lo. Minha razão diz que não podia ter feito nada. Foi tudo muito rápido. Mas a mesma não me deixa dormir repassando cada passo desde a entrada daquele marginal no ônibus.

Quando o ônibus parou na Favela do Mandela eu o vi sair detrás de um posto. Achei a atitude suspeita, mas pensei que poderia estar sendo preconceituosa. Ele entrou pela porta de saída do ônibus, sentou próximo e fingiu que dormia. Cheguei a olhar pra ele e pensar que atitude era suspeita, mas estava tão cansada que simplesmente fechei os olhos e continuei ouvindo o programa de rádio. A viagem durou pouco, o ato de violência durou menos ainda, mas é como se eu tivesse sido marcada com brasa quente durante um longo período.

Acho que a palavra que melhor se encaixa com o que estou sentindo é ódio. Ódio de mim, ódio daquele verme desprezível, ódio das autoridades que permitiram que as coisas chegassem a esse ponto. Mas principalmente ódio de não ter feito nada mais do que uma queda de braço com meu algoz. Sim, eu reagi. Minha vontade era correr atrás dele, e socá-lo até ver sua blusa vermelha manchada com seu sangue. Bater até que ele se arrependesse de ter nascido. Essa sede por sangue me domina de uma forma descomunal.

Duas músicas não saem da minha cabeça: A paz que eu não quero seguir do Rappa e uma outra do Legião Urbana cujo nome não me recordo. Desta última, as partes que não me saem da cabeça são quando o autor diz “Vamos cantar juntos o hino nacional, a lagrima é verdadeira...vamos comemorar juntos com festa, velório e caixão. Está tudo morto e enterrado agora...”. A música do Rappa diz que “as grades do condominio são pra trazer proteção, mas também trazem a dúvida se é você que está nessa prisão. Me abraça e me dê um beijo, faça um filho comigo, mas não me deixe sentar na poltrona num dia de domingo. Procurando novas drogas de aluguel nesse vídeo coagido. É pela paz que eu não quero seguir admitido...”.

Eu adoraria que minha voz fosse tão forte a ponto de incomodar cada pessoa responsável pelo meu infortúnio, desde o governador até o coronel de merda que fica sentado sem fazer nada mamando nas tetas do Estado e contando sua propina. Eu queria que minha voz se unisse a tantas outras vozes que já passaram pelo que eu estou passando. Porque não existe uma única pessoa que não tenha vivido, mesmo que de maneira indireta, o que eu vivi. Quem não conhece alguém que foi assaltado levante a mão e reze pra continuar tendo essa sorte.

O pior de tudo é sermos apenas mais um número nas estatísticas da violência. É estar num local de pseudo segurança, cercados por policiais e simplesmente se sentir o menor e mais indefeso ser da Terra. Eu agradeço de todo o coração os dois jovens PMs que me deram socorro. Mas se esse delinqüente não tivesse certeza que sairia ileso, eu não estaria fazendo parte de mais uma estatística. Eu não estaria sem meu celular, sem acesso a Internet e sem meu precioso sono.

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